QUESTÃO 1 - 1º EQ UERJ 2017


Pietro Brun, meu tetravô paterno, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos italianos  pobres,  em  busca  de  uma  utopia  que  atendia  pelo  nome  de  América.  Pietro  queria  terra,  sim.  Mas  o  que  o  movia  era  um  território  de  outra  ordem.  Ele  queria  salvar  seu  nome,  encarnado  na  figura  de  meu  bisavô,  Antônio.  Pietro  fora  obrigado  a  servir  o  exército  como  soldado por anos demais (...). Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava, meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova. Embarcou como clandestino.
Ao  desembarcar  no  Brasil,  em  10  de  fevereiro  de  1883,  Pietro  declarou  o  nome  completo.  O funcionário do Império, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou-o conforme ouviu. Tornando-o,  no  mundo  novo,  Brum  –  com  “m”.  Meu  pai,  Argemiro,  filho  de  José,  neto  de  Antônio e bisneto de Pietro, tomou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la.
No  início  dos  anos  1990  cogitamos  reivindicar  a  cidadania  italiana.  Possuímos  todos  os  documentos, organizados numa pasta. Mas entre nós existe essa diferença na letra. Antes de ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial que substituiu um “n” por um “m”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e com certeza morreu sem saber. E, se soubesse, não teria se importado, porque era apenas o nome de mais um imigrante a bater nas costas do Brasil despertencido de tudo.
Cabia a mim levar essa empreitada adiante.
Há uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e não com a que herdamos. (...) Eu escolho a memória. A desmemória assombra porque não a nomeamos,  respira  em  nossos  porões  como  monstros  sem  palavras.  A  memória,  não.  É  uma  escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade de ressignificar o passado para ganhar um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento, mas nos tornamos o próprio movimento. Gesto humano, para sempre incompleto.
Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda.(...)
Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como nós, que resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois até Pedro Brum.
ELIANE BRUM
Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: LeYa, 2014

No texto, a autora narra fatos e expõe suas opiniões relacionados à vinda de sua família para o Brasil.
Uma dessas opiniões está explicitada em:

(A) Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que não perderia seu filho.
(B) No início dos anos 1990 cogitamos reivindicar a cidadania italiana.
(C) Antes de ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial que substituiu um “n” por um “m”.
(D) Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado.




Gabarito: D


Comentário da questão:

O texto da jornalista e escritora Eliane Brum constitui uma narrativa de memórias, ao longo da qual ela relembra fatos de sua vida, ao mesmo tempo que emite opiniões sobre os mesmos. No fragmento apresentado,  a  autora  recupera  lembranças  da  história  de  migração  vivida  por  sua  família  no  final  do  século  XIX.  Nele,  identifica-se  a  exposição  de  fatos,  dentre  os  quais:  a  chegada  do  momento  de  seu  bisavô  se  alistar  no  exército  e  a  decisão  de  seu  tetravô  de  que  não  permitiria  isso;  o  desejo  da  família brasileira de reivindicar a cidadania italiana no início dos anos 1990 e a necessidade, por isso, de corrigir o erro cometido pelo burocrata imperial; a travessia do mar que fez seu tetravô deixar na margem italiana mortos e vivos. No mesmo fragmento, identificam-se, também, opiniões, como, por exemplo,  a  que  a  autora  expressa  ao  dizer  que  Pietro  Brun  não  poderia  ser  o  mesmo  ao  alcançar  a  outra margem, no caso o Brasil, a nova pátria para a qual fugia. Trata-se aqui de um ponto de vista sobre o fato de fazer tal travessia, em especial nas condições relatadas

Eixo interdisciplinar: Construção do texto
Item do programa: Formas de articulação de ideias
Subitem do programa: Fato, opinião
Objetivo: Discriminar fato de opinião.


Fonte: Revista Eletrônica do Vestinular UERJ


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